terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Parlapatões: o grupo acima de tudo


Raul Barreto em "Clássicos do Circo". Foto: Luis Doroneto

Raul Barreto é palhaço, ator e produtor há 26 anos. Formou-se em Engenharia Civil na Faap, em 1982. Trabalhou com Antonio Nóbrega de 1985 a 1992 como produtor, pesquisador e palhaço. Estudou no Circo Escola Picadeiro, onde se formou palhaço, malabarista e atirador de facas. Concluiu o curso de circo com estágio na CNAC-Centre Nationale des Arts du Cirque, em Chalones sur Marne (França). No ano de 1993, entrou para o Grupo Parlapatões, no qual realiza, como palhaço e produtor, mais de 30 espetáculos, participando dos principais festivais nacionais e internacionais. Em 2006, funda o Espaço Parlapatões. Participou da criação do Circo Roda Brasil. Foi professor de Artes Circenses na Casa do Teatro de Lígia Cortez durante oito anos.

Nesta entrevista, o artista discorre sobre a dinânica dos Parlapatões e os desafios inerentes à manutenção de um grupo teatral.

Alguns grupos do teatro amador de São Carlos buscam a constância em seus trabalhos artísticos, mas esbarram em entraves como falta de unidade de pensamento, espaço para ensaios ou conciliação de horários. Quais são as condições mínimas para que um grupo consiga manter-se ativo e com qualidade?
Raul – As condições mínimas são perseverança e vontade, porque essas dificuldades todas são inerentes ao teatro, e elas não se resolvem nem com o sucesso nem com a consagração. O Brasil é um país onde o sucesso não é cumulativo. Ano a ano, o artista é obrigado a provar o seu talento, a mostrar sua competência. É lógico que, na medida em que o grupo vai crescendo, algumas facilidades físicas aparecem, desde que os integrantes do grupo sacrifiquem um pouco de sua vida pessoal. Acredito que o crescimento dos Parlapatões vem muito em função de uma postura, tanto minha quanto do Hugo [Possolo], de que todo o dinheiro que entra vai ser empregado primeiramente nas necessidades do grupo, depois pensamos na nossa fatia do bolo. E as necessidades do grupo hoje em dia são muitas: aluguel da sede, telefone, funcionários. Para complementar o orçamento pessoal, cada um mantém trabalhos paralelos. Só colocando os interesses do grupo em primeiro lugar é que se atinge uma coerência no trabalho.

Existe intercâmbio entre os Parlapatões e os grupos amadores do Brasil?
Raul – Pouco. Por causa da nossa agenda, fazemos esse intercâmbio muito menos do que gostaríamos. São muitas as demandas que temos que atender, com teatro, circo, festivais. Quando promovemos um fomento, em que fazemos oficinas etc, conseguimos chamar grupos amadores para participar. No entanto, percebemos que oficinas muito curtas não são eficientes para os grupos, porque em três horas não é possível ensinar grande coisa. Seriam necessárias umas três ou quatro semanas de oficina, no mínimo, para que pudéssemos passar um pouco do nosso conhecimento. Um modelo que temos hoje em dia para trocar um pouco de experiência é a aula-espetáculo, uma espécie de bate-papo sobre a ética e a trajetória do grupo, que é bem legal, mas infelizmente acaba sendo uma troca um pouco curta e superficial. É uma pena. Com a inauguração da SP Escola de Teatro, talvez isso mude um pouco.

O livro “Riso em Cena – Dez anos de estrada dos Parlapatões” compreende dois conceitos, o de “adestramento” e “apropriação”, que parecem nortear a criação do grupo. Que conceitos são esses?
Raul – Na “apropriação”, o ator deve se apropriar daquilo que está fazendo. O Hugo, por exemplo, que é autor, não tem apego ao texto nas minúcias, não faz questão das mínimas vírgulas e acentos. Se o ator se apropriou e entendeu a idéia do texto, ele tem o direito de fazê-lo e ser expressivo a sua maneira. E também todo o aparato do espetáculo, como figurino, cenário, música, deve ser apropriado pelo ator. Não se trata de criação coletiva, pois existe o figurinista, o cenógrafo, o músico, mas o ator tem a obrigação de se apropriar disso tudo e não ser um mero cumpridor de regras. E “adestramento” tem a ver com aparelhamento, com a obrigação do preparo corporal para a cena, no sentido da biomecânica de Meyerhold. O universo do palhaço, por exemplo, é muito mecânico: o ator dá dois passos, vira, dá um tapa no outro, faz outro movimento e assim por diante, como numa estratégia de adestramento.

Fale sobre o Espaço Parlapatões e sobre a utilização do antigo prédio do TBC, em 1999.
Raul – Atualmente, mantemos três espaços: o de Pinheiros, na rua Capote Valente, que é destinado a ensaios e produção dos espetáculos; o Espaço Parlapatões, que é um dos teatros da Praça Roosevelt e foi inaugurado em 2006. Pretendemos, neste ano, também mudar a produção para Praça Roosevelt, para ficarmos mais perto do teatro. Temos também um galpão junto com Cia. Pia Fraus na Lapa, na rua Sepetiba. Quanto à nossa experiência no prédio do TBC, foi ela que nos fez sonhar com um espaço próprio. Ficamos lá durante dezesseis meses desenvolvendo repertório e foi muito enriquecedor para o grupo, naquele momento. Isso nos permitiu criar ali, nessa curta temporada, sete espetáculos, inclusive o “Pantagruel”. Com um espaço próprio, você cria uma referência para o seu espectador, e isso foi crucial para nós. Infelizmente, o TBC foi desativado novamente. A gestão de um espaço cultural depende de empenho, e temos isso no nosso espaço, essa preocupação de que o espaço não pode ser referência apenas de um grupo, mas sim estar aberto aos diversos coletivos teatrais, privilegiando um pouco o teatro de grupo, mas abrindo também para o teatro comercial, para a dança e a música, fazendo com que o público tenha uma referência de diversidade e que essa diversidade promova a rotatividade de pessoas.

Em geral, como se dá a escolha dos textos a serem encenados pelos Parlapatões?
Raul – Varia muito. O “ppp@WllmShkspr.br” nos foi apresentado pelo Emílio Di Biasi. A mesma coisa aconteceu com “Piolim”, texto que nos foi apresentado pela Neide Veneziano e seu marido Perito Monteiro. O Hugo, muitas vezes, é quem idealiza o texto, escreve, reescreve e apresenta para os atores. O texto primeiro passa por muitas alterações ao longo do processo. Às vezes, chegamos a estrear a sexta ou sétima versão de um texto.
Pode-se dizer que sessenta ou setenta por cento dos textos dos nossos espetáculos são escritos pelo Hugo, mas às vezes temos colaboradores, como o Mário Viana, que é o segundo dramaturgo mais montado pelo grupo, porque escreve a quatro mãos muito bem com o Hugo e também propõe textos só dele, como “Um chope e dois pastel e uma porção de bobagem”.

Os atores dos Parlapatões têm uma grande experiência com o teatro de rua. Quais são os riscos e os benefícios de fazer teatro de rua atualmente?
Raul – O grande benefício é o imediatismo da reação da platéia. Se você não a conquista logo de cara, ela vai embora. Isso é maravilhoso, porque a roda se desfaz quando o público está insatisfeito. Manter uma roda durante uma hora e meia é um grande desafio. É preciso ter um bom texto e também um bom desempenho artístico. Na rua existe o risco do inusitado, da ambulância passando, do helicóptero, um cachorro, um bêbado. Então, o ator tem que ter disponibilidade para encarar tudo isso e ter esse olhar e atenção de 360 graus para saber que o espetáculo é dinâmico e sujeito a alterações. A rua dá um traquejo que é fundamental para a caixa preta, para o improviso, o jogo e a quebra da quarta parede. O ruim é ficar sujeito ao tempo, porque às vezes se arma uma baita estrutura e, de repente, chove. “Zèrói”, por exemplo, era uma mega proporção, com trapézio, uma parafernália sonora, cenário, vinte e cinco pessoas no elenco e doze técnicos. Quando fomos estrear, em São Paulo, não chovia há quatro meses. Daí, tudo pronto para começar, roda da platéia formada, começa a cair uma chuvarada. Tivemos que adiar a estréia em uma semana. É isso que a rua traz de ruim às vezes. Mas a relação com a platéia é inigualável. Procuramos sempre reproduzir isso na sala fechada, essa comunicação imediata, que é uma coisa que ficou impregnada no grupo.

E com relação a dinheiro na rua? Vocês passam chapéu ou vão para rua com cachê já pago?
Raul – Hoje em dia, não vamos mais para a rua para passar o chapéu. Na verdade, passar o chapéu no Brasil ainda é uma iniciativa romântica, é quase um subemprego. O artista não consegue fazer um valor muito digno passando o chapéu, sobretudo no farol, porque ali o cara tem dez segundo para fazer qualquer coisa e o motorista não está nem aí, quer que o sinal abra logo e, além disso, há um vidro entre o motorista e o artista. Então, é quase que um favor pegar uma moedinha e jogar para o cara. Os espetáculos de rua que temos feito, geralmente, precisam de um grande aparato técnico. Daí, só podemos fazer se houver cachê pré-estabelecido. Na Europa, quando passamos por Edimburgo, por exemplo, nos apresentamos tanto em sala fechada quanto na rua. Lá, o artista de rua é muito valorizado, e o chapéu que passamos nos surpreendeu, rendendo, de repente, uns trezentos euros. No Brasil é mais difícil.

Quais são os planos para 2010?
Raul – Estamos programando um novo infantil. O Circo Roda Brasil, parceiro nosso, tem um novo espetáculo em que estamos rascunhando idéias para estrear no segundo semestre. Vamos continuar apresentando “O papa e a bruxa”, que é um texto do Dario Fo e é um espetáculo muito popular. Esse espetáculo, das poucas vezes que fizemos em festivais ou no interior, foi recebido de uma forma tão positiva, tão eufórica, que nos fez perceber o quão popular é Dario Fo. A partir de abril, queremos fazer a peça nos CEL’s aqui de São Paulo, nas periferias, e viajar com o espetáculo no interior. Vai ser muito legal para o elenco ter essa experiência.